domingo, agosto 25, 2013

Somos Tão Jovens

 
Cintia já viu o filme Somos Tão Jovens, que eu ainda não vi, mas certamente pretendo, e me contou algumas coisas gerais sobre ele, evitando spoilers, como costumamos dizer. Ela comentou que houve coisas que não entendeu e sentiu que uma pessoa ligeiramente mais velha teria entendido, porque viveu a "época". Acho que é isso mesmo, pois, sendo alguns anos mais velho que ela, tive tempo de ver o Legião Urbana, se não no auge, ainda como uma das bandas mais expressivas do rock nacional, isso no fim dos anos 80 e início dos 90, época de minha adolescência. Ela também comentou que, se Renato Russo era mesmo como foi retratado no filme, deve ter sido uma pessoa difícil de lidar. Tenho a impressão de que ele o foi de fato até certa altura; nos últimos anos de sua curta vida, já dava a impressão de uma pessoa mais dócil e tratável, o que me faz lembrar a frase célebre de Cícero: "Os homens são como os vinhos: a idade melhora os bons e azeda os ruins". E creio que com 36 anos - idade em que o "profeta" do Legião despediu-se deste mundo - qualquer pessoa já tenha idade suficiente para ter-se tornado o que tiver de ser.
 
Como fã, na época, não deixei de ler algumas entrevistas que Renato concedeu a revistas musicais, e, embora a maior parte do que ele disse já me haja, inevitavelmente, fugido da memória há muito tempo, algumas coisas ficaram. Uma dessas foi que, tendo ele falado de sua tendência à depressão, o entrevistador perguntou se achava que compunha melhor quando deprimido, e a resposta: "Claro!" Mesmo aos 17 anos, o perigo disso me saltou aos olhos, e o que vi mais tarde o confirmou.
 
Pessoas de sensibilidade extraordinária sofrem muito neste mundo, que, evidentemente, não foi feito para elas. Sofrem por não encontrar respostas para perguntas que as outras pessoas nunca se fizeram, sofrem por se sentirem diferentes e não saberem por que, sofrem porque a maioria não as entende, sofrem por não serem capazes de aceitar e confiar quando encontram alguém que entende, e sofrem pela simples grosseria e brutalidade da realidade que as cerca. Quando, além de uma sensibilidade extraordinária, têm a sorte de também possuir talento artístico (pois as duas coisas nem sempre andam juntas), elas muitas vezes fazem disso um refúgio e uma forma de cura, uma maneira de reorganizar seu mundo de uma maneira que faça sentido para elas. Há também aqueles (e desconfio que sejam a maioria...) que ficam apenas com a parte ruim da coisa: têm a sensibilidade que faz alguém aspirar a ser um artista, mas não o talento que torna isso possível. A esses, resta encontrar o conforto que lhes for possível em obras como aquele poema de Thiago de Mello, e fazer o que estiver ao seu alcance para dar algum sentido a esse furacão de pensamentos e sensações não-expressos, e tentar tirar deles algo de positivo.
 
A bênção do artista, seja ele músico, poeta, pintor, ou o que for, é conseguir transformar sua angústia em algo bonito e de valor - e isso é uma bênção para ele e para a humanidade. Para o artista, essa metamorfose, embora dolorosa, traz, ao fim do processo, uma satisfação que talvez não se compare a nenhuma outra coisa na vida. Para a humanidade, ela presta o grande serviço de trazer à existência coisas que façam todo o cansaço e sofrimento que enfrentamos valer a pena. Falando por mim, digo que um mundo feito de trabalho exaustivo, notícias ruins, frustrações, poluição, pessoas ignorantes e mal-educadas, e onde, além de tudo isso, não existissem Homero, Bach, Leonardo da Vinci, Tolkien e (por que não dizê-lo?) o Legião Urbana, não seria um lugar onde a vida fosse tolerável.
 
Até aí, tudo parece OK, ou, ao menos, tão OK quanto possível. A pessoa sensível e dotada de talento tem a arte como válvula de escape, que, além de aliviar sua angústia, produz beleza e sentido, coisas importantíssimas. De certa forma, são coisas ruins e boas compensando-se mutuamente, o que talvez seja apenas, e mais uma vez, a natureza buscando maneiras de restabelecer o equilíbrio, como ela costuma fazer. O problema - o perigo, como eu dizia ao falar de Renato Russo - começa quando uma pessoa dotada da angústia do artista (acompanhada ou não de talento, tanto faz) se apaixona pela própria angústia, pelo próprio sofrimento. Então a arte, ou qualquer canhestra, porém honesta tentativa de produzi-la, deixa de ser uma terapia, um remédio, uma cura, e vira uma espécie de veneno. A pessoa passa a procurar voluntariamente se angustiar e deprimir porque acha que assim "produz" melhor, ou, o que é ainda mais pernicioso, porque isso faz com que se sinta "especial". Então ela passa a só enxergar o que lhe causa dor, porque a dor "inspira". Fecha a porta à felicidade, porque ser infeliz é mais "poético".
 
Em minha vida já vi diversas pessoas (fossem artistas que eu admirava ou pessoas com quem convivi) caírem nessa armadilha, e nenhuma delas terminou bem. Não tem como terminar bem alguém que vira as costas à mão estendida de um amigo para poder fechar-se em sua solidão e então escrever um belo (?) poema sobre ela. Não tem como terminar bem alguém que recusa um ombro e um ouvido carinhosos para não ter que abrir mão do prazer distorcido de poder sentir que "ninguém o entende". Felizmente, não se trata de uma armadilha sem saída: algumas dessas pessoas caíram em si a tempo e compreenderam que as alegrias simples da vida, se não são tão duradouras quanto as grandes realizações, podem, muitas vezes, trazer a mesma satisfação. Que essas alegrias estão aí para todos e que não há nada de errado em aceitá-las com gratidão. Que definhar em sofrimentos desnecessários é um preço alto demais a pagar para sentir-se especial. E que dor, saudade, melancolia, fazem parte de nossa condição humana. Aceitá-las torna menos doloroso lidar com elas, e, se conseguirmos transformá-las em matéria-prima de algo belo e duradouro, então excelente: esse é o maior prodígio de alquimia que pode existir. Mas acostumar-se à dor ao ponto de começar a gostar dela jamais fez de ninguém uma criatura melhor.

domingo, novembro 11, 2012

Morte


Uma das coisas que mais me aborrecem na sociedade ocidental moderna é o modo como a cultura que ela criou se posiciona diante de um fato tão natural quanto a morte. Parece existir um acordo tácito pelo qual todos fingem que ela não existe, até que ela os obrigue a encarar sua existência, mandando um lembrete sob a forma da perda de alguém próximo. Crianças, em geral, são "protegidas" do conhecimento do fato de que seus entes queridos um dia irão deixá-las, mesmo não querendo, e de que elas também não escaparão do "único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre", como escreveu Ariano Suassuna. Mais cedo ou mais tarde, essas mesmas crianças sempre acabarão se deparando com o fato da finitude da vida - geralmente de maneira bem mais traumática e dolorosa do que teria sido se isso lhes tivesse sido ensinado em casa, de uma maneira natural, como acontece com tantos outros aspectos da vida.

É intrigante tentar determinar em que ponto da história de sua formação a sociedade que mencionei há pouco adotou essa atitude hipócrita e avestruzística em relação à morte, se considerarmos que os antecedentes históricos e as raízes que fundamentaram a civilização ocidental levariam a esperar outra coisa. Entre os antigos romanos, os ancestrais falecidos estavam presentes na vida de seus descendentes como se ainda vivessem. Eram homenageados diariamente com atos rituais breves e simples; toda casa tinha um pequeno altar onde devia haver um fogo sempre aceso, dedicado aos deuses lares, que nada mais eram que os espíritos dos membros da família já falecidos. Cada homem rogava a seu pai e mãe mortos que, de onde estivessem, olhassem por ele e pelos seus, e considerava honrosa e confortadora a ideia de que um dia seus descendentes se dirigiriam a ele da mesma forma. Também a tradição judaico-cristã, quando corretamente compreendida, estimula uma atitude de gratidão e reverência para com os mortos (muito distante do desprezo com que a maioria hoje fala em "gente morta", quase como se isso fosse um insulto), o que acaba tendo o efeito de fazer com que as pessoas encarem com serenidade o fato de que um dia também vão morrer. Pergunto: onde e quando tudo isso foi perdido? Por que, hoje em dia, a maioria das pessoas experimenta mal-estar ao passar diante de um cemitério e nem cogita a ideia de entrar nele, nem mesmo para prestar uma pequena homenagem a alguém que amaram? Por que é considerado de mau gosto falar em morte, mesmo que no fundo todos saibam que ela é real?

A verdade é que isso não é difícil de responder. As pessoas não gostam de cemitérios porque esses lugares as obrigam a pensar no próprio fim - que, no dia a dia, elas preferem fazer de conta que nunca irá chegar. Não teriam esse problema se não estivessem tão acostumadas a levar a vida de uma forma tão essencialmente materialista e superficial, se não dependessem exclusivamente, para agregar valor a si próprias, de coisas temporárias como aparência e bens materiais. Haverá um momento em nossas existências em que será preciso deixar tudo isso para trás, e faríamos bem em aceitar tal ideia e conviver harmonicamente com ela, em vez de tentar negar o fato a todo custo, evitando até mesmo pensar nele.

 É natural que a ideia da morte nos intimide. Mesmo para quem acredita que ela não é o fim de tudo, essa experiência apresenta-se como uma ruptura tão radical com tudo o que conhecemos, que o nosso temor ancestral pelo desconhecido não perde a oportunidade de se fazer presente. Mas, apesar do que diz Suassuna, será a morte, mesmo e necessariamente, um "mal"? Não consegui deixar de me lembrar do universo de Tolkien, onde existem os elfos, seres imortais por essência: a velhice não existe para eles - pelo menos, não a velhice física - e, mesmo que morram em combate ou de causas acidentais, renascem num outro corpo idêntico ao que tinham, com a mesma personalidade e as lembranças de tudo o que viveram... Os humanos os invejam por isso - só que, ironicamente, a recíproca é verdadeira. Os elfos, ao menos os que já viveram muito, invejam a mortalidade dos homens: depois de passar por eras inteiras, não há como não sentir um profundo cansaço, uma angústia acumulada por terem visto gerações de amigos de outras raças morrerem à sua volta, e, talvez o pior de tudo, ter que testemunhar tanto mal acontecer, e chegar à conclusão de que ele também é eterno. Talvez a morte seja, realmente, um repouso salutar e necessário, e talvez nossa mortalidade seja a própria mola que nos move: talvez seja a consciência do fim iminente o que nos leva a desejar fazer do tempo que temos algo que valha a pena, algo, qualquer coisa, que leve aqueles que ficarem a se lembrarem de nós depois que nos formos - pois, mais dia, menos dia, iremos, e essa é a única coisa em toda a vida da qual podemos ter absoluta certeza.

sábado, setembro 10, 2011

Ancestrais



Peço a meus deuses ou à soma do tempo
que meus dias mereçam o olvido,
que meu nome seja Ninguém como o de Ulisses,
mas que algum verso perdure
na noite propícia à memória
ou nas manhãs dos homens.

Jorge Luis Borges


Há sensações e percepções que às vezes são despertadas em momentos que não esperamos, por situações que não poderíamos prever. Neste momento, o fato de não ser uma criatura isolada no tempo me atingiu com toda a força. Para (tentar) ser mais claro, isso quer dizer o fato de que sou o produto de um processo que começou séculos, milênios ou milhões de anos antes do meu nascimento, conforme eu queira me ater aos aspectos históricos, raciais ou biológicos da coisa. Pois eu, como de resto qualquer ser humano, sou o resultado da combinação de todos esses fatores. Eu, e quem estiver me lendo neste momento, somos o que saiu de uma panela onde todos esses ingredientes foram postos a cozinhar juntos durante eras. Será que valeu a pena?...

Só para registro, o que causou esse acesso de loucura foi o CD Lepta (título que, vejam só, quer dizer história, no sentido de conto, narrativa), da banda russa Arkona. Mal entendo uma ou outra palavra do que está sendo cantado, mas mesmo assim a música tem o poder de despertar coisas em mim que me perturbam com uma sensação de "ancestralidade". Não parece vir ao caso o fato de eu não ter, que eu saiba, nem o mais remoto traço de ascendência eslava.

Há tanta coisa que faz de nós o que somos - e é um tanto assustador pensar que talvez nem dez por cento disso tenha a ver com nossa vontade, com nossas escolhas, com qualquer coisa que possamos controlar. O homem é o sujeito da História, dizem, e talvez seja, mas "homem", aí, não quer dizer os homens, e sim o Homem - a Humanidade, para a qual pouca diferença fazem os pensamentos que volta e meia entram em turbilhão dentro da cabeça de um indivíduo.

Ou podem fazer diferença, de uma forma que ninguém imaginaria.

Em 1999, quando eu tinha 25 anos, escrevi uma tentativa de poema épico sobre a conquista da Bretanha pelos romanos - pelo que me lembro, historicamente correto, literariamente patético. Meu eu-lírico era um simples legionário dentre os milhares que participaram da primeira expedição (fracassada) e mais tarde da segunda, bem-sucedida. O poema era dividido, acho, em quatro partes: a primeira tinha um tom ufanista, de estamos-indo-conquistar-uma-nova-terra; a segunda era mais realista e dolorosa, pois falava de como os sonhos romanos de conquista foram atropelados pela realidade a bordo das carruagens de guerra bretãs e de como os pretensos conquistadores foram forçados a se retirar; a terceira tratava da segunda expedição, agora mais cautelosa e inteligentemente planejada, e de seu sucesso; e a quarta parte era a que realmente me interessa aqui. Nela, o legionário perguntava-se: tudo bem, vencemos - e agora? E, no meio de muitos versos tão canhestros que espero que ninguém jamais os leia, ele dizia o que hoje me parece ser a única frase aproveitável de todo o poema: "Sendo senhor, sinto-me tão pequeno!" Pois tinha chegado a compreender que era apenas o elo atual de uma corrente que vinha de um passado longínquo e desconhecido, e estendia-se até um futuro impossível de imaginar. "Uma pedra numa longa muralha."

Aflitivo? Depende de como se olhe. A imensidade do tempo pode nos levar a sentir que qualquer coisa que realizemos será minúscula e transitória - e será mesmo. Porém, minúscula e transitória não quer dizer insignificante. O passado longínquo e o futuro inimaginável não pertenceriam um ao outro se não houvesse aquele pequeno elo, ali, talvez despercebido, mas indispensável. A muralha estaria incompleta sem aquela única pedra.

Goethe escreveu que o que herdamos de nossos ancestrais precisa ser merecido antes que passe verdadeiramente a ser nosso. Olhando para a outra extremidade do mistério, eu acrescentaria que o que deixaremos para nossos descendentes precisa ser algo que valha a pena, para que nossa estada neste planeta tenha tido um sentido. O que me leva a reformular o que pensei há pouco sobre aquilo que nos tornamos ter pouco a ver com nossa vontade. No fundo, temos escolha, embora não tanta quanto gostaríamos: não podemos escolher as coisas que nos acontecem, mas podemos escolher de que modo vamos enfrentá-las. E isso, no fim das contas, pode ser a escolha mais importante - e a que dirá que tipo de elo nos tornaremos naquela corrente infinita.

quinta-feira, agosto 18, 2011

For the Sake of Revenge

Escrevi um comentário (não gosto de chamar de crítica) sobre o DVD For the Sake of Revenge em 2007, e desde então ele esteve esquecido no meu computador. Quando o redescobri, decidi que valia a pena colocar aqui no IW, já que tenho gostado bastante da experiência de escrever sobre música e o blog foi pouco atualizado este ano. A versão que apresento aqui teve pouca coisa mudada, exceto pela exclusão de um parágrafo inicial que tratava do boom do heavy metal na Finlândia, ideia que reaproveitei no meu comentário sobre o Korpiklaani.

Pessoalmente, considero o Sonata Arctica um dos expoentes mais interessantes da safra finlandesa que conheci nos últimos anos. Críticos metidos a sofisticados torcem o nariz, rotulando-o como um "clone de Stratovarius" - sem contar que bandas de metal melódico como um todo são geralmente consideradas caça legal pela maior parte dessa raça. O que me cumpre dizer é que quem deixar de conferir o som dos caras por causa de preconceitos desse tipo estará se privando de algo maravilhoso.

Este DVD é uma bela opção para os fãs que desejarem conferir ao vivo as músicas dos álbuns da banda, e ao mesmo tempo uma ótima introdução para quem ainda não os conhece. Ele traz um concerto gravado no Japão em 2006, com repertório muito bem escolhido, som e imagem impecáveis, e, claro, um desempenho irrepreensível do quinteto finlandês. Inclui também uma utilíssima discografia, fichas pessoais dos integrantes (por alguma razão misteriosa, essa parte é intitulada Biography) e um documentário gravado durante a turnê japonesa, ao qual, para ser sincero, não consegui assistir: sei que há quem ache interessante, mas eu sofro de uma incurável tendência a bocejar incontrolavelmente quando tento assistir a documentários de rock. Se pago por um DVD de música, o que espero dele é música: quero ver e ouvir a banda tocando. Não tenho qualquer curiosidade de ver os músicos desembarcando no aeroporto, ou aquelas brincadeirinhas "divertidas" no ônibus e no backstage, ou ainda pessoas que provavelmente fazem parte da equipe que trabalha com a banda, mas que não tenho a menor idéia de quem sejam, falando em finlandês, com legendas em inglês, sendo que a maior parte do que dizem não parece fazer o menor sentido.

E já que música é o que interessa, é de música que vamos falar. O Sonata Arctica é uma daquelas bandas que conquistam logo à primeira ouvida quem aprecia a fusão de beleza melódica, peso e técnica. Todos os músicos são excelentes, ainda que o cantor Tony Kakko monopolize a atenção da platéia. Em tempos também tecladista da banda - função hoje exercida pelo ótimo Henrik Klingenberg, de modo que Kakko fica livre para se concentrar apenas nos microfones -, o frontman é também o principal compositor, responsável por canções emocionantes como Kingdom For a Heart, 8th Commandment, Replica, Victoria’s Secret, todas presentes no DVD. Porém, o verdadeiro hino dos fãs da banda vem quase no início do setlist, para ser mais exato é a terceira música: falo da indescritivelmente maravilhosa FullMoon, que aqui é apresentada em sua versão mais matadora, superior não só à gravação original (do primeiro álbum da banda, Ecliptica), mas também à outra versão ao vivo já existente, encontrada no álbum Songs of Silence - Live in Tokyo. Aqui, além de o duelo entre Klingenberg e o guitarrista Jani Liimatainen estar mais inspirado que nunca, música ganhou um final emocionante, aparentemente um excerto da música White Pearl, Black Oceans, que é do álbum Reckoning Night. Infelizmente não conheço esse álbum, que não consegui adquirir porque, dizem, está fora de catálogo (alô, Laser Company). Victoria’s Secret, essa nem era uma de minhas músicas preferidas nos álbuns do Sonata, mas, depois de conferir em DVD a tremenda energia que a banda coloca nela ao vivo, até a minha maneira de ouvi-la mudou. E que dizer então da vertiginosa 8th Commandment? Nessa música, a beleza do trabalho instrumental não desmereceria qualquer composição clássica, mas a isso ainda se mesclam várias mudanças de tempo que provocam aquele frio no estômago impossível de descrever, mas que todo fã de metal bem tocado conhece - aquela maravilhosa e quase incontrolável vontade de "agitar". O show passa ainda por outras músicas maravilhosas como Blinded No More, Black Sheep, San Sebastian, Shamandalie, Sing in Silence (talvez a única da qual gosto mais na versão de estúdio), fechando com a empolgante The Cage... Quer dizer, fechando de certa forma, pois no final dela a banda resolveu encaixar Vodka, uma espécie de brincadeira com uma melodia folclórica israelense, na qual os músicos tentam tocar cada vez mais rápido. Perfeitamente dispensável, a meu ver. Mas o importante é: For the Sake of Revenge é um DVD magnífico e amplamente recomendável a fãs e curiosos. Como atrativo extra, ainda vem um CD contendo uma "versão compacta" do show: o áudio de 15 das 25 músicas que aparecem no DVD.

terça-feira, fevereiro 08, 2011

Korpiklaani

A história do heavy metal, a exemplo da história da humanidade, parece dividir-se naturalmente em eras, só que, no caso do gênero musical, é claro, elas se sucedem com muito mais rapidez; mas, como na História em geral, cada período tende a ser marcado pelo predomínio de uma determinada nação. O heavy metal nasceu na Inglaterra, que por longo tempo foi a Meca do gênero. Mais tarde, aproximadamente dos anos 80 aos 90, a Alemanha assumiu o posto. E hoje, no início deste novo milênio, parece ter chegado a vez da Finlândia, que, num tempo surpreendentemente curto, começou a revelar ao mundo boas surpresas uma atrás da outra - e refiro-me tanto a bandas novas quanto a outras que, já com bons anos de estrada em seu país, só recentemente conseguiram o merecido reconhecimento além-fronteiras. O fenômeno cobre uma vasta diversidade de estilos: metal melódico tradicional (Stratovarius, Sonata Arctica), folk/viking metal (Turisas), fantasy metal com influências diversas (Battlelore, que teve a grande sacada de usar no metal épico a alternância de vocais masculinos guturais com femininos etéreos, até então uma característica de bandas de doom/death metal dos anos 90), e, claro, o hoje mundialmente famoso Nightwish, que apostou numa fórmula ousada ao misturar metal melódico e elementos progressivos com vocal de ópera, e acabou caindo no gosto popular ao ponto de chegar ao megaestrelato. Não obstante, em minha opinião a coroa de banda mais original e curiosa da nova safra finlandesa vai para o Korpiklaani. Conheci graças a algumas faixas encontradas na internet, e, tradicionalista que sou, em vez de "baixar" os álbuns completos, acabei comprando três deles: Tervaskanto, Korven Kuningas e Karkelo.

No próprio nome, que significa algo como "Clã da Floresta", nas capas dos discos e no visual cultivado pelos músicos, a banda já entrega seu objetivo, que é o de fazer um som que tenha tudo a ver com o folclore de seu país. A maioria das letras é em finlandês, e, embora dessa língua eu só conheça umas 20 palavras e nada da gramática, de modo que não tenho como ver a diferença, li em algum lugar que são coalhadas de palavras e expressões típicas de dialetos locais ou de uma modalidade arcaica da língua - não é "finlandês para executivos". De qua
lquer forma, quem se liga muito na parte lírica, como eu também, não precisa se preocupar, pois os encartes dos CDs trazem tudo traduzido para o inglês.

O som é aquilo que a imprensa musical definiria como "folk metal", e por vezes com mais ênfase no "folk" que no "metal", o que talvez não agrade a alguns headbangers mais radicais, mas sem dúvida mexe com quem aprecia música de qualidade, independentemente de rótulos. Peso e velocidade não faltam (de forma alguma!), mas a música do Korpiklaani tem durante a maior parte do tempo um astral muito alegre e até festivo, coisa que não costuma ser associada ao heavy metal. A cabeça pensante da banda parece ser o vocalista e guitarrista Jonne, cuja voz rouca e sonora é sem dúvida uma de suas marcas registradas; completam a formação Hittavainen (viola, violino, rabeca, flauta), Cane (guitarras), Matson (bateria e percussão), Jarkko (baixo) e Juho (acordeon e guitarra acústica). E, palavra de honra, a emoção que os caras colocam em cada nota que tocam é coisa que ouvi em poucas bandas até hoje! Como disse, o sentimento predominante é o de alegria, é o tipo de banda que dá para imaginar tocando numa taverna para um público ruidoso e animado: músicas como Wooden Pints, Tervaskanto, Erämaan Ärjyt, Juodaan Viinaa, Vodka, Bring us Pints of Beer e inúmeras outras são exemplos magníficos. Mas, como até a alegria cansa se for permanente e imutável, há as exceções, como a bela e melancólica Gods on Fire (uma das poucas com letra em inglês), que aborda a questão ecológica de maneira um tanto pessimista, concluindo que "o que está feito, está feito"...

Uma coisa que eu, pessoalmente, precisei relevar para me tornar um fã da banda foi a característica que aparece nos próprios títulos de várias das músicas que acabo de citar: praticamente um terço das letras são apologias ao álcool, que os músicos parecem considerar uma parte essencial da alegria festiva que pontificam - e eu, que tomo no máximo uma taça de vinho tinto em ocasiões muito especiais, sendo que isso nunca me impediu de me divertir, e já observei de perto (dentro da família, para ser mais exato) os efeitos devastadores que o álcool pode ter sobre a vida e a dignidade de uma pessoa, rejeito essa parte. Porém, boa música é boa música: desafio qualquer um a ouvir Vodka, que abre o álbum Karkelo, sem sair literalmente pulando pelo quarto - a música é maravilhosa, independente de eu nunca ter provado vodka na vida, nem pretender, e discordar totalmente do refrão "drinking is good for you". E há outros momentos em que é possível curtir igualmente música e letra, como no belo achado que é Paljon on Koskessa Kiviä ('As Corredeiras têm Muitas Rochas'), do Korven Kuningas, poema inspirado onde as corredeiras de um rio são uma metáfora para a vida, e as rochas, para as dificuldades e sofrimentos que enfrentamos nela. É interessante registrar, talvez como um paralelo, que o título do disco onde ela aparece quer dizer 'Rei do Rio'. Enfim, recomendo o Korpiklaani a qualquer pessoa que goste de boa música e não tenha preconceitos: é uma banda da qual tanto quem não curte som pesado quanto os "metaleiros" radicais devem passar longe. Pena que não pareça muito provável que os caras nos deem o prazer de vê-los tocar por estas paragens, pois algumas faixas que circulam na internet, gravadas no Wacken Open Air, na Alemanha, demonstram que mandam muitíssimo bem ao vivo, transformando qualquer plateia numa grande taverna... Bem, quem sabe? Surpresas às vezes acontecem. Kippis!


quarta-feira, janeiro 26, 2011

The Clans Will Rise Again


Sou fã de carteirinha do Grave Digger desde 1998, quando tive meu primeiro contato com a banda através de Knights of the Cross, então seu mais recente álbum. E não poderia ter tido uma introdução melhor, pois esse disco é um exemplo perfeito das características que eu viria a admirar tanto nessa banda alemã: pesquisa cuidadosa por trás dos temas históricos ou míticos (pois vamos concordar, já tem muita banda de "RPG metal" por aí fazendo letra tosca sobre dragão e espada) e um power metal de alta classe, cujo diferencial é a combinação mortífera de doses cavalares de peso e melodia. Normalmente se considera que, quando uma banda puxa muito num dos dois quesitos, tende a ficar devendo no outro; o Grave Digger é a prova viva de que não precisa ser assim, desde que se tenha o cacife necessário para juntar um peso que lembra uma coluna inteira de tanques de guerra com uma beleza melódica de tirar o fôlego.

É verdade, para quem até então sempre havia admirado cantores de voz clara e límpida, o vocal rasgadíssimo de Chris Boltendahl exigiu um pouco de tempo para que me acostumasse, mas logo constatei ser impossível não me empolgar com músicas como Baphomet, Monks of War, Knights of the Cross (faixa-título daquele álbum) e Lionheart - na verdade todas as faixas são matadoras, mas eu tinha que citar algumas. E nos anos seguintes, ao mesmo tempo em que ia adquirindo um a um os trabalhos anteriores, também comprava os álbuns novos logo que eram lançados, e o GD quase sempre manteve o nível, brindando-nos com um álbum magnífico atrás do outro: Excalibur (1999), The Grave Digger (2001), Rheingold (2003 - tive a felicidade de vê-los ao vivo na turnê desse disco), The Last Supper (2004), Liberty or Death (2006) e Ballads of a Hangman (2008), para citar apenas os discos de estúdio, pois houve ainda os ao vivo Tunes of Wacken (2001) e 25 to Live, gravado em São Paulo, em comemoração aos 25 anos da banda, em 2005. Por fim, no ano passado, Boltendahl e sua gangue trouxeram à luz o que é até o momento seu último "filho": este The Clans Will Rise Again.

E é na hora em que vou comentar o disco propriamente dito que vejo que não é por ser fã que se pode deixar de ver certos fatos quando eles se apresentam... Primeiramente, o conceito escolhido para o álbum já vem com um sabor de deja vu - para ser mais direto: de coisa requentada. No que parece uma tentativa de tirar um pouco mais de proveito de um trabalho antigo e bem-sucedido (o tipo de atitude que eu não esperaria do Grave Digger, diga-se de passagem), eles voltaram ao tema dos clãs escoceses e sua luta de séculos pela independência contra os ingleses, o que já haviam abordado em Tunes of War (1996), disco que deu início à melhor e mais respeitada fase da carreira da banda e trouxe pelo menos duas músicas que se tornariam obrigatórias em todos os shows: Rebellion (The Clans are Marching) e The Dark of the Sun. Com tantos temas históricos interessantes ainda esperando ser abordados, não dá para entender o motivo do "bis", a menos que seja mesmo vontade de viver das glórias do passado. Aliás, eu cheguei a mandar um e-mail para o Chris sugerindo a história de Vlad III da Valáquia, o vulgo príncipe Drácula, como tema para um disco - tem drama, batalhas grandiosas, carnificina, e a associação do personagem com o famoso vampiro permitiria um delicioso crossover entre dois climas que o GD sabe explorar como ninguém: o épico medieval e o soturno/sobrenatural (usaram fartamente este último no disco The Grave Digger, que homenageia Edgar Allan Poe). Ele respondeu no mesmo dia, mas com uma única frase: "Thanx for your idea and kind words. My best - Chris". Não o culpo, afinal fã dando ideia é o que não deve faltar... Mas continuo achando que seria melhor buscar temas inéditos do que apenas tentar sugar um pouco mais dos que já foram abordados.

Que ninguém me entenda mal: The Clans Will Rise Again não é um disco ruim - longe disso. As interpretações viscerais de Chris e o desempenho irretocável de seus colegas no manuseio de seus respectivos instrumentos fazem dele um trabalho que satisfará plenamente os ouvidos de qualquer apreciador de heavy metal bem tocado. O problema é a sensação de já termos "visto esse filme antes", mais o fato de que falta, aqui, aquele sólido embasamento histórico que era em grande parte o que tornava o Tunes of War tão interessante, ao menos para mim: cada faixa daquele álbum, além de seu mérito musical, narrava um capítulo da história da Escócia, com um rigor admirável que não tirava em nada a espontaneidade do que estava sendo tocado: Scotland United falava sobre o início das rebeliões no ano 1018, The Dark of the Sun era sobre o eclipse solar que serviu de sinal de encorajamento aos escoceses durante uma das mais duras batalhas que travaram, William Wallace (Braveheart) homenageava o mais famoso herói nacional da Escócia, The Battle of Flodden era redigida como se fosse a carta de um soldado escocês para sua esposa, narrando essa grande batalha em 1513 e a morte heroica do rei James IV. Coisas da mesma magnitude ficam faltando em The Clans Will Rise Again, onde quase todas as letras parecem hinos conclamando os escoceses à guerra, e esse papo de "lutar até a morte pela liberdade", "morrer pela Escócia", "reino de aço e sangue" e coisas que tais, embora cause seus arrepios quando colocado num contexto convincente (que era o que acontecia em Tunes of War) acaba soando tedioso e artificial quando é quase a única coisa de que se fala durante um disco inteiro (que é o que acontece em The Clans Will Rise Again). Não foi por acaso que a faixa que mais me agradou foi Highland Farewell, que, temperada por uma interessante melodia céltica em gaita de foles, presta uma homenagem nostálgica às Terras Altas escocesas: "Can’t you hear it? Can’t you see? / Magic islands, haunted hills / Where I live and dwell / Wherever I may wander, wherever I rove / My sunset and my dawn / Highland farewell". Bonito, indeed.

Em suma, este é um disco que os fãs do GD certamente vão comprar e considerar que valeu o investimento - pois, mesmo não estando entre as melhores coisas que eles já fizeram, ainda é Grave Digger - e que não-fãs apreciadores de metal de qualidade podem ouvir e gostar, sem dar muita atenção às letras, mas definitivamente não é o álbum que eu recomendaria a um neófito interessado em ser apresentado a essa grande banda de power metal.

sábado, dezembro 25, 2010

Promessas

Atualizar meus blogs com alguma regularidade sempre foi um problema para mim, e, como acontece com muitos problemas, bastou que eu me mexesse e o enfrentasse de forma séria para a solução acontecer, ao menos com um deles: para minha satisfação, vejo que o Notas de Literatura tem sido atualizado todo mês, sem falhas, desde fevereiro. A verdade é que assunto para ele nunca faltou, já que estou sempre lendo alguma coisa: era só questão de me determinar a encarar a tarefa de escrever. Já com este Inner Wilderness, disciplina não basta. Para que um texto capaz de se encaixar aqui nasça, é preciso que haja um "estalo", seja causado por algo que aconteça e me deixe pensando, ou por pensamentos que comecem a rebater dentro da minha cabeça mesmo sem serem impulsionados por qualquer acontecimento específico. E, para completar, todo texto destes nasce com um "estalo", mas não é todo "estalo" que eu tenho que irá gerar um texto. Eis por que este blog, por sua própria natureza, geralmente será atualizado com menos frequência que o outro.

E o que aconteceu desta vez foi a inesperada repercussão causada por meu último post, datando do já distante mês de junho. Como podem ver, recebi três comentários aqui no blog, o que, para os meus padrões, é bastante, e, além disso, outras tantas pessoas o comentaram diretamente comigo. Todas mulheres, se isso for de alguma relevância para o caso. E todas concordaram com alguns pontos, discordaram de outros, sendo que a crítica mais recorrente foi a de que eu havia generalizado demais. E o fiz, reconheço. Em primeiro lugar, porque, ainda que seja crível que existam mulheres que não sejam do modo como as pintei, só posso tomar como base a minha própria experiência - e, embora eu seja o primeiro a desejar que essa experiência tivesse mostrado outra coisa, o fato é que ela mostrou exatamente o que escrevi, e não foi uma nem duas vezes, mas várias. Em segundo, quem escreve sob influência da emoção (qualquer emoção) por vezes não consegue ser tão cordato assim.

De qualquer forma, relendo o texto, percebi uma coisa. Nele, atribuo às mulheres o costume de fazer promessas e descumpri-las, mas, pensando a respeito agora, parece-me que isso não é exclusividade delas: ocorre apenas que, por ser eu um homem, na maioria das situações que já vivi e nas quais ouvi promessas, estas vieram de mulheres. Não quer dizer, necessariamente, que elas cumpram suas promessas menos que os homens - ou, melhor dizendo, não quer dizer que os homens cumpram suas promessas mais do que as mulheres. Talvez a questão não seja de gênero, e sim de cultura.

Tive uma educação bastante tradicional (podem chamá-la de antiquada, se quiserem). Não vou me alongar falando de todos os valores que aprendi e que hoje são considerados pela maioria "papo de velho" ou "coisa de gente chata"; digo apenas que, se eu um dia tiver filhos, espero ser capaz de passar essas coisas a eles e fazê-los entender por que agir como achamos certo é mais importante do que fazer o que o resto do mundo chama de normal. E uma coisa que minha mãe uma vez me disse, numa das nossas conversas de antes de dormir, era que, se eu não tivesse certeza de que iria cumprir, não devia prometer, e que, se já tivesse prometido, devia cumprir - mesmo que tivesse que "suar sangue" para isso. Não me lembro o que foi que trouxe o assunto à baila, mas ela usou essas exatas palavras, e eu nunca as esqueci. Mas sei que nem todo mundo teve pais que ensinassem essa lição, e que muitos que os tiveram, não a assimilaram.

Não que isso sirva para desculpar algo, mas o ser humano é um produto do meio, e não é tradição entre nós, brasileiros, dar grande importância a essas coisas. É comum ouvir ou ler depoimentos de estrangeiros que se viram em situações complicadas por terem levado muito ao pé da letra o que era dito por conterrâneos nossos, e demoraram algum tempo para compreender que agora estavam num país onde é preciso marcar um encontro para o meio-dia se quiserem que ele aconteça até as duas da tarde, e onde sim quer dizer talvez, e talvez quer dizer não. Até acredito que a maioria das pessoas não tenha qualquer intenção maldosa ao não cumprir suas promessas: acontece simplesmente que as esquecem logo após fazê-las, tão pouca importância tem a palavra empenhada no sistema de valores em que foram educadas. Um sujeito com quem eu trocava cartas (sim, sou desse tempo) certa vez expressou numa delas certas opiniões um tanto preconceituosas que me surpreenderam, e, quando as questionei, ele saiu-se com esta: "Cara, você não devia levar tão a sério o que eu escrevo..." Bolas! Então, por que não pensava melhor antes de escrever? Se o cara era assim escrevendo, como não seria falando, sem nada que registrasse suas palavras?

Como já escrevi em outro lugar, o grande vício do brasileiro (não creio que seja do brasileiro, mas é o exemplo que tenho diante dos olhos) é pensar que os norte-americanos, alemães, ingleses e demais habitantes do assim chamado Primeiro Mundo é que têm o dever de serem íntegros e confiáveis; a ele, brasileiro, só compete ser cordial, alegre, hospitaleiro, caloroso e festivo. Enquanto não deixar de existir na nossa cabeça essa distinção entre as qualidades que se espera de um cidadão de país desenvolvido e as que se espera de um terceiromundista, é muito difícil que o Brasil deixe de ser visto pelo resto do mundo como pouco mais que o país do Carnaval e dono de uma natureza exuberante que não fizemos nada para merecer e da qual, por falar nisso, nem conseguimos cuidar sozinhos. Em outros países, se você promete algo a alguém e não cumpre, fica marcado de tal forma que terá sorte se aquela pessoa algum dia voltar a confiar em você seja para o que for; aqui, uma coisa desse tipo passa batido, quase sem ser notada - a não ser por criaturas anômalas como eu. E um país nada mais é do que a soma das pessoas que vivem nele. Sei que isso é "coisa de gente chata" e "papo de velho", mas será por mera coincidência que esses outros países são respeitados e admirados mundo afora, enquanto nós do Brasil temos que nos contentar com a fama de simpáticos? Que cada um conclua o que quiser.

domingo, junho 20, 2010

Escrevei para entendê-las...

Seria de se esperar, com base na boa e velha lógica, que um cara que tem uma maioria de amigas, e poucos amigos, como é o caso deste que aqui digita seus confusos pensamentos, tivesse à sua disposição um panorama ilustrativo do universo feminino e melhores condições de entender como funciona a mente (e, muito mais importante, a alma) dessas fascinantes e enlouquecedoras (no bom e no mau sentido) representantes da metade da humanidade dotada de ovários. Acontece que, como em tudo relacionado às mulheres, a lógica simplesmente não funciona nesse caso.

Não espero que ajam com perfeita coerência, primeiro porque isso tiraria delas a natureza emotiva que é em grande parte a responsável por torná-las tão interessantes, e, segundo, porque acho que ninguém deveria exigir de outrem algo que também não é capaz de fazer, mas será que mexeria com a ordem do universo se existisse pelo menos uma que não agisse sempre de maneira tão estapafúrdia que, por totalmente imprevisível, acabasse se tornando previsível? (Pois, depois de um certo número de vezes ficando perplexo com os atos delas, você acaba compreendendo que só precisa perguntar-se qual seria a conduta mais absurda e sem sentido imaginável numa determinada situação, e sempre esperar isso delas. E pronto: não será mais pego de surpresa.) Sairiam os planetas de suas órbitas se porventura aparecesse uma única mulher que sentisse ao menos um pequeno desconforto cada vez que fizesse uma promessa solene para depois não a cumprir, em vez de aparentemente considerar isso uma prerrogativa de seu sexo? Ou que, antes de fazer promessas, tirasse um instante para se perguntar se iria ou não cumpri-las e, em caso negativo, não prometesse?

Quando eu tinha uns 13 anos, apareceu no meio da minha turma da escola uma publicação muito interessante que circulou de mão em mão, apenas entre os garotos - não, não era revista de sacanagem. Tratava-se de um livrinho que se propunha a ensinar macetes de como conquistar as garotas. Pouco lembro do que li nele, e o que lembro me parece, hoje em dia, ser um apanhado de coisas que não iam muito além do simples bom senso (não que, naquela idade, nós tivéssemos algum). Mas lembro que o livro era salpicado de frases de efeito, e, como na época eu já era maníaco por citações, algumas me ficaram na memória. Uma delas dizia que as mulheres são tanto melhor amadas quanto pior compreendidas. Só muitos anos depois é que eu fui perceber toda a verdade que existe por trás desse pequeno e aparentemente absurdo aforismo.

Pois a verdade, meus caros (e agora dirijo-me aos meus colegas usuários de Prestobarba) é que as meninas não querem ser compreendidas. Ou melhor, até querem, mas só pelos amigos. Não se esforce para entendê-las: de qualquer forma, é pouco provável que consiga, e, se conseguir, isso só fará com que elas deixem de vê-lo como um ente masculino - você vai virar um amigo, e, para a mulher, amigo é um ser assexuado. Um homem pode vir a apaixonar-se por uma amiga, mas nunca o contrário: para uma mulher, a partir do momento em que ela passar a te considerar um amigo, qualquer possibilidade de algo mais definitivamente morreu. Para nós, a companheira desejada é uma em quem confiemos; para elas, nada existe de mais antiafrodisíaco que confiança. Isso é o que faz o cara cafajeste tão irresistível e o sincero tão sem graça. Pessoalmente, penso que a namorada, companheira, amante, esposa adequada (e notem que eu não disse "ideal", pois isso não existe) seria aquela que, além de ser todas essas coisas, fosse também minha melhor amiga, a pessoa que tivesse prioridades e interesses semelhantes aos meus, que desse importância às mesmas coisas que eu, com quem eu pudesse conversar sobre tudo, de quem eu não guardasse nenhum segredo, cuja companhia eu achasse mais divertida que a de qualquer "mano", e que me entendesse. Já para as garotas, parece ser impossível conciliar romance e sexo com esse tipo de cumplicidade: para elas, as duas áreas são incomunicáveis. Não se misturam, são água e óleo. Um cara é para namorar e transar, outro é para conversar, fazer coisas juntos, trocar desabafos, dar apoio. Os dois são necessários, mas não podem ser a mesma pessoa: um que sirva no primeiro campo fica inelegível para o segundo, e vice-versa. Assim funciona a cabeça feminina - detalhes ou motivos, eu não sei. Acho que elas também não.

Num de seus mais belos poemas, o grande Olavo Bilac diz que "ouve estrelas", e finaliza assim: "Direis agora: 'Tresloucado amigo! / Que conversas com elas? Que sentido / Tem o que dizem, quando estão contigo?' / E eu vos direi: 'Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas.'" Não sei até que ponto amar pode ajudar a entender seja o que for, e uma das vantagens de ser poeta é estar dispensado de ser fiel aos fatos (é a famigerada "licença poética"), mas, num primeiro momento, pareceu-me que escrever a respeito - já que escrever sempre me ajuda a organizar os pensamentos - poderia me fazer chegar um pouco mais perto de entender esses seres maravilhosos e enfurecedores chamados mulheres. Ledo engano: entendê-las não é possível, e, se o fosse, não serviria para nada. Compreendidas ou não, elas continuariam prometendo e não cumprindo, desejando coisas e temendo-as ao mesmo tempo, buscando seus sonhos com persistência e coragem que nós homens nunca conseguiríamos igualar e, ao se verem cara a cara com a possibilidade da realização do sonho, virando as costas e fugindo. De qualquer forma, as estrelas, apesar de "femininas", são interlocutoras bem mais acessíveis!

quinta-feira, junho 03, 2010

Adeus ao Mestre

Já faz um certo tempo que deixei de acreditar naquele lugar-comum de que "nada é por acaso"; embora inegavelmente confortador, esse surrado aforismo simplesmente não encontra sustentação nos fatos. Porém, há uma outra frase que, bem menos repisada, continua a me parecer que tem chances de ser verdadeira. Esta diz que "tudo acaba onde começou". Pois foi meu irmão, a mesma pessoa que, há mais de 20 anos, me apresentou a admirável música de Ronnie James Dio, quem me deu, na sexta-feira, 21 de maio, a notícia de que o golden voice havia falecido cinco dias antes, no domingo, 16 - ele comentou o fato comigo quando cheguei em casa na noite de sexta, depois de, como de costume, passar a semana fora a trabalho.

Dio faria 68 anos agora em julho. Nascido em meio à tensão da Segunda Guerra Mundial, foi testemunha ocular do surgimento do rock’n’roll, que coincidiu aproximadamente com sua adolescência. Ao longo de uma carreira de quase 50 anos, viu e fez muita coisa, sendo que, durante as últimas três décadas e meia, esteve entre os principais responsáveis pelos grandes feitos praticados por nada menos que três das maiores bandas de toda a história do som pesado. Primeiro, no Rainbow, onde sua curta mas inspiradíssima parceria com o grande guitarrista Ritchie Blackmore produziu, durante cerca de três anos, um generoso punhado das coisas mais pungentemente belas que já ouvi: a simples menção de títulos como Catch the Rainbow, Snake Charmer, Sixteenth Century Greensleeves, Tarot Woman, Stargazer, Gates of Babylon e Lady of the Lake atinge como flechas o coração de qualquer um que conheça essas músicas. Mais tarde, foi a vez do Black Sabbath, onde a entrada de Dio calou a boca dos que achavam que a saída de Ozzy Osbourne seria o fim da banda (aliás, sem tirar o valor de Ozzy, sempre preferi Dio, um cantor que dava mais importância à música e menos ao showmanship, fora o fato de eu achar sua voz incomparavelmente mais bonita e de sua técnica ser indiscutivelmente superior). Por fim, Dio teve sua própria banda, que levou seu nome, e nela conseguiu mostrar que o peso do heavy metal, alimentado por sua voz incomparável e pelos solos únicos e empolgantes do jovem guitarrista irlandês Vivian Campbell, sem falar da participação de vários outros músicos extraordinários, envolvendo letras oníricas e inspirativas, por vezes de uma profundidade atordoante, podia impulsionar os sonhos de muita gente. Nos últimos tempos, novamente ao lado dos companheiros do Black Sabbath, embora com o nome Heaven and Hell, gravou dois discos excelentes e criou altas expectativas em todos os seus fãs... Expectativas que terminaram de repente em 16 de maio.

Tive a felicidade de estar presente em dois shows de Dio com sua banda própria - um em Porto Alegre, em 2001, e outro em São Paulo, em 2006. E afirmo que ele foi mais do que apenas um cantor formidável (embora eu não consiga pensar em nenhum outro vocalista de metal que sequer chegue perto dele) e um excelente letrista e compositor. Soube ser tudo isso à sua própria maneira, construiu sua própria lenda talvez sem perceber que estava fazendo isso: como um bardo medieval, falava à imaginação de quem o ouvia, e mexia com emoções que, uma vez postas em movimento, faziam de quem ouvia sua música uma pessoa diferente - se a música fosse ouvida do jeito certo, que não pode ser expresso com palavras. Dio fazia-nos ver que existe magia em lugares onde pessoas comuns não a enxergam. Como ele dizia, olhar para um arco-íris e não sentir nada é já estar morto. Não com seu discurso, mas com sua música (pois, ao contrário de outros astros de rock, Dio nunca foi de fazer discursos messiânicos), aprendi que sonhar é necessário, e que o mais importante não é se é possível ou não que nossos sonhos se realizem - pelo simples fato de existir, o sonho nos modifica para melhor.

Descanse em paz, Ronnie James Dio. Seu coração sagrado continuará a ser para nós como um arco-íris na escuridão.

Sacred Heart

(Dio/Appice/Bain/Campbell)

The old ones speak of winter
The young ones praise the sun
And time just slips away

Running into nowhere
Turning like a wheel
And a year becomes a day

Whenever we dream
That's when we fly
So here is a dream
For just you and I

We'll find the Sacred Heart
Somewhere bleeding in the night
Look for the light
And find the Sacred Heart

Here we see the wizard
Staring through the glass
And he's pointing right at you

Now you can see tomorrow
The answer and the lie
And the things you've got to do

Oh, sometimes you never fall
And ah - You're the lucky one
But oh - Sometimes you want it all
You've got to reach for the sun

And find the Sacred Heart
Somewhere bleeding in the night
Oh look to the light
You fight to kill the dragon
And bargain with the beast
And sail into a sight

You run along the rainbow
And never leave the ground
And still you don't know why

Whenever you dream
You're holding the key
It opens the door
To let you be free

And find the Sacred Heart
Somewhere bleeding in the night
Run for the light
And you'll find the Sacred Heart

A shout comes from the wizard
The sky begins to crack
And he's looking right at you - Quick
Run along the rainbow
Before it turns to black - Attack

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Gratidão II

Nunca me atraiu a tendência "olha eu aqui" que parece nortear a atitude da maioria das pessoas no que se refere à internet - prova disso é que ainda hoje, em pleno ano de 2010, continuo a manter uma distância segura de Twitters, MySpaces e seus parentes (o orkut eu até tangenciei, mas deve fazer uns dois anos que não vou lá). Irrita-me a ansiedade inexplicável da vasta maioria dos usuários dessas redes em compartilhar não ideias, conhecimento ou qualquer outra coisa de relevante, e sim com quem "ficaram" na festa tal ou o fato de terem mudado o corte do pelo do cachorrinho. São coisas que eu simplesmente não quero saber, e reservo-me o direito de não querer.

Quando criei este blog, no fim de 2007, depois de três anos tocando o
Notas de Literatura, foi com a ideia de postar textos inspirados por meus próprios pensamentos, sem necessariamente estarem vinculados a livros ou filmes. Sempre que possível, faria isso sem entrar em detalhes sobre o evento da minha vida pessoal que porventura houvesse inspirado o pensamento, justamente para não me igualar aos "seres" que acabo de "escovar" no parágrafo anterior. Só que há momentos na vida em que as circunstâncias, sem pedir licença, simplesmente mandam para o espaço até mesmo as nossas mais enérgicas resoluções, obrigando-nos a fazer precisamente o que havíamos decidido não fazer. Então, vamos nós.

É irônico que, tão pouco tempo depois de escrever um texto sobre gratidão - aquele, não inspirado por nada em especial -, eu seja trazido de volta ao assunto, desta vez por motivos bem concretos. Para limitar ao mínimo possível as referências à minha vida pessoal, e também para não me alongar rememorando coisas desagradáveis, direi apenas que, na tarde de 05 de janeiro, de maneira mais ou menos repentina, comecei a sentir fortes dores abdominais, eventualmente identificadas como sintoma de uma apendicite, doença que uma pessoa de sorte pode morrer velha sem ter, mas que não escolhe idade: tive-a aos 35 anos, como poderia ter sido aos sete, aos 18 ou aos 60. Fui hospitalizado, submetido à cirurgia adequada, e então passei por uma convalescença que, mesmo rápida, deu-me, pela primeira vez na vida, a compreensão do que é estar com uma doença realmente incapacitante - e do que é gradualmente se recuperar dela, retomando aos poucos o contato com coisas que, no dia-a-dia, temos o mau costume de ver como "normais". Voltarei a falar nisso e em algumas das suas implicações.

De forma bem previsível, minha maior dívida de gratidão em todo esse episódio é para com minha mãe, que permaneceu ao meu lado praticamente o tempo todo, zelando de todas as formas para que eu ficasse bem, ou tão bem quanto possível naquelas circunstâncias, lembrando-se de uma longa série de detalhes práticos nos quais eu dificilmente teria pensado, e, mais importante ainda, permitindo-me o conforto de sua companhia, o que foi especialmente precioso nos terríveis dias imediatamente após a cirurgia, quando a medicação pesada me mantinha num permanente mal-estar físico, com as inevitáveis consequências sobre o meu estado de espírito. Como, ao contrário da maioria das pessoas, não tenho nenhuma dificuldade para externar sentimentos, nem acho constrangedor fazê-lo (não invoco nenhum mérito pessoal nisso: simplesmente me considero com sorte por ser assim), já agradeci de viva voz, pessoalmente, e com a ênfase devida, mas, como não parece certo contar a história sem mencionar novamente a minha gratidão, aqui está: muito obrigado, mãe.

Agradeço, também, ao médico e à equipe do hospital que cuidaram de mim. Graças e eles, estou aqui, novamente de pé e pronto para outra (não outra apendicite, que, pelo que sei, e graças a Deus, não se tem duas vezes! Espero jamais passar por nada de semelhante de novo). Apesar do aquecimento global, das profecias maias e do
Big Brother, também me sinto grato por viver no século XXI, quando a tecnologia médica disponível permitiu que tudo fosse feito sem nenhuma grande incisão, o que se traduz num restabelecimento rápido e praticamente nenhuma cicatriz. Bem diferente do que era uma operação desse tipo meros 20 ou 30 anos atrás, já pensaram?

Um agradecimento também a
o Samir
, que, de mero conhecido cordial que era até agora, passa a integrar a restritíssima lista das pessoas que considero meus amigos - e quem me conhece sabe que nunca uso essa palavra no seu sentido orkútico: para mim, amigo é amigo. E não dá para considerar menos que isso uma pessoa que faz por outra o que esse cara fez por mim. Valeu, Samir!

Agradeço, ainda, aos meus colegas de trabalho, que, mesmo com a equipe já reduzida nessa época de férias, desdobraram-se heroicamente para cobrir mais essa baixa inesperada, além de me darem bem-humoradas injeções de ânimo por telefone em diversos momentos. Obrigado, pessoal.

Quero terminar falando de outro tipo de gratidão, a que experimentei ao ter de volta uma série de pequenas coisas que (percebo agora) de pequenas não têm nada. Eu experimentei dor numa escala, para mim, inédita, e, o que é mais, dor constante, persistente, que durante alguns dias me impediu de coisas como relaxar e dormir. Uma vez livre disso, e impossível não se perguntar como é que geralmente não nos damos conta da delícia indescritível que é poder deitar, respirar fundo e relaxar, sem sentir nenhuma dor ou incômodo, nenhum enjôo causado por remédios, nada. Como não percebemos a bênção que é uma boa e tranquila noite de sono, na posição que mais nos agrade, sem a preocupação de não deitar sobre o lado direito? Nunca vou esquecer o primeiro copo d'água que me deram, depois de quase dois dias sem poder ingerir coisa alguma. Cada copo d'água que eu beber de agora em diante vai me lembrar disso, e será mais apreciado que qualquer vinho raro. E o que dizer da minha maravilhosa cama, depois de ter experimentado cama de hospital - uma estrutura em cima da qual a gente tem a sensação de estar sempre se equilibrando, pois não parece algo projetado para que uma pessoa se deite com um mínimo de conforto? Podem apostar que de agora em diante prezarei muito mais todas essas coisas e outras semelhantes, e me lembrarei com mais frequência de reclamar menos e agradecer mais.

Por fim, embora a impressão que tenho seja de que esse período de tratamento demorou meses, vejo que tudo se deu em meras duas semanas, o que significa que o ano está só começando. E, de repente, ele me parece cheio de possibilidades.

Obrigado!

sábado, dezembro 19, 2009

Gratidão


É interessante como os sentimentos mais legais que nós, seres humanos, experimentamos em nossas efêmeras existências são (coincidência ou não) justamente aqueles que é mais importante e relevante dar do que receber. E talvez a nenhum outro sentimento isso se aplique melhor do que ao da gratidão. Não que não seja maravilhoso receber uma manifestação sincera de gratidão de outra pessoa, mas esse é realmente um sentimento que faz um bem muito maior a quem o experimenta do que a quem é dirigido, o que me leva a suspeitar que a gratidão talvez seja a contraparte positiva do ódio - este, como dizia um verso de uma música que ouvi certa vez, é "o veneno que um toma, querendo que o outro morra". A música não era grande coisa e não lembro ou nunca soube quem a cantava, mas só por trazer esse verso ela já merece ser poupada do limbo do esquecimento que é o destino fatal de 99 por cento de todos os pop-rocks de FM.

Um bom começo para tentar explicar o que quero dizer é aquela gratidão que não se destina a pessoas, e sim a Deus, ou a qualquer poder superior no qual a pessoa acredite - e talvez quem não acredita em nada disso sinta-se grato ao acaso, mesmo que essa ideia pareça um tanto sem sentido. Não vou dizer que estou cem por cento satisfeito com a vida que levo - estaria bem mais contente se pudesse ganhar a vida escrevendo ou ensinando, ao invés de me dedicar a serviços burocráticos, por mais que esteja ciente da importância do que faço -, mas fico grato, sim, quando, no meu trajeto a pé para o trabalho pela manhã, passo por alguns sujeitos de camiseta azul que também se dirigem ao trabalho, sendo que o deles, numa grande indústria aqui da cidade, é braçal e paga um quarto do que eu ganho. Talvez esses caras não tenham tido a chance de estudar, ou talvez tenham tido a chance e tenham tido preguiça, tanto faz; minha gratidão é por ter tido a chance e também a vontade, pois as duas coisas foram necessárias para que eu chegasse a ter o que tenho hoje. Não me sinto realizado, mas não tenho nenhuma preocupação material. Pode parecer excessivamente pragmático vindo de alguém que se considera um idealista, mas botar a cabeça no travesseiro à noite e poder dormir sem ficar pensando se vai ou não conseguir fechar as contas no fim do mês também tem seu valor. É algo pelo qual não é descabido ser grato. Além disso, o dinheiro que ganho vai um dia pagar o meu curso de mestrado, que poderá ser uma chance de mudar de vida - uma chance que os tais caras de camiseta azul talvez nunca tenham.

Refletir sobre tudo isso e sentir que tenho pelo que agradecer faz bem. Não a Deus: não creio que faça diferença para Ele. Mas faz bem
a mim.

Fico pensando, também, na ideia mais ou menos generalizada de que um gesto que haja demandado sacrifício de quem o fez é mais merecedor de gratidão do que um que tenha sido espontâneo, natural. Talvez seja mais merecedor, mas deve haver um motivo qualquer na complexa natureza humana para que as coisas pelas quais mais facilmente nos sentimos gratos sejam aquelas feitas quase sem perceber pela outra pessoa. Um gesto de amizade sincera (aliás, "amizade sincera" é redundância: se não for sincera, não é amizade) é sempre espontâneo, gratuito, feito por prazer, e, no entanto, que gratidão desperta! Um momento agradável que se partilha fazendo seja o que for, uma boa conversa, um desabafo feito ou ouvido, algumas lágrimas nossas no ombro de um amigo, ou as dele no nosso - tanto faz. Quando a amizade é verdadeira, tudo isso tem o mesmo valor. Eu fico grato a um amigo que está sempre disponível para me ouvir quando preciso, mas fico igualmente grato quando ele, ao precisar que alguém o ouça, procura por mim.

Por fim, acredito que a gratidão é algo que deve ser oferecido e aceito alegremente, mas não é algo que se deva procurar - não se deve fazer coisa alguma esperando gratidão. E isso não apenas por causa do nobre princípio cristão da bondade desinteressada, que não espera recompensas: há um motivo bem mais prático, que é o simples fato de que, na maioria das vezes, quem espera por gratidão se decepciona. A gratidão vem quase sempre quando e de onde não se espera.

terça-feira, novembro 24, 2009

O tempora! O mores!

Confesso que sempre achei difícil me manter informado até mesmo sobre as coisas importantes da atualidade. Imagino que a maioria dos membros da casta marginalizada dos apaixonados por literatura enfrentem o mesmo problema: sentar e ler um jornal de cabo a rabo só é tarefa exequível para quem desconhece o canto de sereia de um bom romance. O leitor entusiasta, quando encontra um tempo livre no seu dia, quer logo voltar ao livro que estava lendo na véspera, ou começar aquele outro que parece tão empolgante, e, como, com poucas exceções, o tempo não é um recurso abundante para ninguém nestes dias, é preciso fazer uma opção. Resultado: acabo lendo, do jornal, somente aquilo que, após uma rápida análise preliminar, me parece realmente essencial. Quem quiser pode me chamar de alienado, mas, se eu o for, ao menos posso dizer que estou em excelente companhia:

"Para que vou gastar uma hora do meu dia lendo coisas que amanhã não vão valer mais nada? (…) Um jornal é lido para ser esquecido. Já o livro é lido para eternizar a memória." (Jorge Luis Borges)

Sim, o Borges! Depois disso, receberei a pecha de "alienado" como um elogio.

Se eu já suo para me manter atualizado sobre as coisas importantes, não seria uma manchete do tipo Universitária expulsa da faculdade por causa do comprimento do vestido que iria me motivar a clicar num link do Yahoo Notícias e gastar preciosos minutos me inteirando dos detalhes. Porém, como acontece com muitas das demais vulgaridades e insignificâncias que tanto fascinam a maioria (e, por isso, são pautas preferidas pelos meios de comunicação), essa história acabou por me atropelar independentemente da minha vontade, forçando-me a formar uma opinião sobre o caso. Não que eu ache que minha opinião vá interessar a alguém - pois, para ser franco, também não ligo a mínima para o que os outros porventura pensem sobre coisas desse naipe -, mas, como a coisa em si é apenas a ponta de um iceberg que pode, ele sim, merecer nossa atenção (e nossa preocupação), então vá lá.

Primeiro de tudo, quero deixar algo claro: as polegadas de pano a mais ou a menos no vestido (ou que nome tenha aquela peça de vestuário) da tal estudante não são a coisa mais importante aqui. Pelo que me toca, ela poderia ir para a faculdade usando apenas um par de brincos de camelô, e isso seria um problema só dela. Claro que provavelmente seria presa por conduta obscena, atentado ao pudor ou outro termo jurídico similar, mas isso também seria problema só dela, e não me faria nem levantar os olhos do meu livro para prestar atenção a qualquer comentário feito a respeito do ocorrido. A conduta intolerante demonstrada pelos colegas da tal moça é de fato preocupante, mas também não é o meu foco aqui. O que me deixa abismado é ver o quanto o valor das coisas, a noção do que é ou não digno de atenção ou admiração, está não só distorcida, mas despedaçada nessa sociedade que extremamente a contragosto temos que chamar de "nossa" sociedade, e nessa "cultura" que eu reluto em chamar assim, porque para mim cultura significa outra coisa.

A estudante passou por uma situação constrangedora, teve alguns de seus direitos humanos mais básicos desrespeitados, e por isso mereceria, em princípio, toda a nossa solidariedade e apoio. Deve ser horrível, depois de passar por tais coisas, ainda sofrer tanta exposição indesejada... Hum... Indesejada? Aí já começo a ter dúvidas.

Pelo andar da carruagem, daqui a um mês ou dois ela estará na capa da Playboy. Depois virão zilhões de entrevistas nos mais diversos programas de TV, desde o da Luciana Gimenez (não esperem que eu saiba o nome do programa) até o Globo Rural, então um convite para participar do próximo Big Brother, um site oficial que os fãs em dois tempos entupirão com mensagens do tipo "adimiro (sic) demais seu trabalho" (Trabalho? Que trabalho??) e por fim seu próprio programa de variedades na TV, que a moça apresentará, provavelmente, sem ter o menor cacoete para a coisa, mas tudo bem, pois isso, metade das pessoas que estão atualmente apresentando programas de TV também não têm. Tudo (inclusive as fotos como veio ao mundo e a participação naquele verdadeiro tratado da baixaria que é o BBB) sempre dando-se ares de moça de família, pois, afinal, tem um filho pequeno... Sua fama não durará mais que os proverbiais 15 minutos de Andy Warhol, é claro, mas já é muito mais do que sua real importância justificaria.

Isso tudo me leva à pergunta: o que podemos esperar de uma sociedade onde o escândalo (que uns procuram, outros aproveitam quando ele lhes cai no colo, mas é sempre escândalo) virou um dos caminhos mais curtos para a fama, a riqueza e a admiração de milhões? Como é que se vai educar uma filha ensinando-a a ter respeito por si e pelos outros, a estudar para ter mérito pessoal e um ganha-pão honesto, quando essa é a imagem de uma "mulher de sucesso" que a mídia oferece? Quando, onde foi que perdemos completamente a capacidade de distinguir entre o relevante e o espúrio? O momento exato é impossível de determinar e não é realmente importante. A causa, essa não é difícil de descobrir: quando não se tem qualquer ideal, objetivo ou referência de valores para nortear a vida, cria-se um vazio, que, como dizia Aristóteles, tem a tendência de se preencher com alguma coisa. E, se tudo o que o meio circundante oferece são futilidades e idiotices, então sinto muito, meus caros, mas é com isso que nossas próximas gerações irão ocupar seus cérebros, suas almas e suas vidas.

quarta-feira, outubro 21, 2009

As Estantes Infinitas

Acabava de ocupar meu assento no ônibus intermunicipal para a costumeira viagem de uma hora e meia que, para mim, marca o fim do fim de semana (fim do fim?... Hum, deixa pra lá, sei que vocês entenderam) e, como sempre faço nesses momentos, abri minha mochila para ligar o discman e pôr os fones nos ouvidos - só que aí percebi que tinha esquecido em casa os meus fones especiais com isolamento acústico. Com um aflito “Oh, não!” em pensamento, abri o bolso frontal da mochila na esperança de achar ao menos um daqueles fonezinhos vagabundos que vêm com os MP3-players e que costumo levar como reserva - mas nem isso encontrei. Resignado, acomodei-me para passar os 90 e poucos minutos seguintes sem ouvir música e, o que é pior, tendo que ouvir as conversas dos outros passageiros, coisa da qual não faço a menor questão.

Há sempre a possibilidade de se estar enganado e de que eu fosse brindado com um delicioso silêncio quebrado apenas pelo ronco distante do motor do ônibus, mas foi questão de minutos que certa senhora que sempre viaja junto comigo começasse a sua algaravia. Ela tem um tipo de voz que sempre me perguntei como poderia descrever se precisasse, mas nunca tinha achado a palavra até aquele momento, quando então a palavra, repentinamente, se apresentou por si mesma: era o que um romancista definiria como uma voz “asmática”. E começou a voz asmática da tal senhora a falar com alguém sentado ao lado dela sobre o estado lastimável em que estavam suas unhas, por ter passado o fim de semana arredando geladeira, armário e outros objetos pesados. Céus, o que eu não teria dado naquele momento para estar ouvindo qualquer coisa do grande Deep Purple. Mas, na presente situação, o que me restava era tentar abstrair. De modo que me transportei de volta para a noite da véspera. Uma noite de sábado.

O cenário era o shopping Praia de Belas, onde eu e a menina que estava comigo chegamos depois de uma longa e agradável caminhada de fim de tarde regada a conversa pela orla do Guaíba, começando na Usina do Gasômetro. Mais exatamente, o cenário era um lugar específico do shopping, a Saraiva Megastore, onde inevitavelmente acabamos, depois de um bom jantar e de um excelente chocolate quente na lojinha da Kopenhagen. Entrar lá e andar por entre todas aquelas estantes, sentindo o ar carregado com o cheiro de papel novo e tinta, sempre me pareceu uma experiência profundamente sensual e um tanto mística, algo que só quem viveu em estreita simbiose com os livros durante toda a vida (ou, ao menos, durante muitos anos) pode chegar a compreender. Mesmo na época em que raramente podia comprar algum livro, eu gostava de ir lá, percorrer com olhos sonhadores aquele mar de lombadas, pegar ao acaso um livro que chamasse a atenção pelo título, ou sobre cujo autor eu soubesse um pouco... Hoje, então, que não preciso mais passar a privação de sair de lá sem levar alguma coisa, a visita a tal lugar tornou-se ainda mais agradável.

A moça, que também é uma leitora inveterada (não saio com quem não seja: podem desistir) comentou, com palavras ligeiramente diferentes, sobre o “garimpo” que é encontrar, no meio de todos aqueles livros, um que nos agrade e vá nos proporcionar longas horas de prazer e, possivelmente, nos ensinar coisas interessantes. Concordei, e fui mais além: é um tanto aflitivo pensar que ali, no meio de milhares de livros, pode haver um ou alguns que, se os lêssemos, poderiam operar mudanças importantes em nossas vidas - pois há livros que têm esse poder. Houve livros que me chamaram a atenção logo que os tive diante dos olhos; por outros eu não teria dado nada a princípio, mas, por uma ou outra razão, comecei a lê-los e não me arrependi. Como saber quantos e quais, entre aquelas fileiras intermináveis de livros, são aqueles dos quais eu inesperadamente iria gostar, mesmo não sendo de autores que eu recomendaria, nem sendo dos gêneros que normalmente prefiro? Cara, isso é aflitivo.

E uma ideia leva a outra, é claro. Richard Bach escreveu: “Mesmo com todos os livros que já temos, ainda há tantos por escrever!” E há. As estantes físicas têm espaço limitado, mas, ainda que o mundo inteiro ficasse coberto de livros, mesmo assim não poderíamos pensar que tudo já teria sido dito. Como o discípulo de um mestre zen aprendendo que sua educação jamais estará completa, sou levado à conclusão de que o legado cultural da humanidade continuará para sempre em construção. E todos fazemos parte disso - até mesmo, querendo ou não, quem não lê. A diferença é que ler, refletir, interligar, construir sua própria cultura, é assumir um papel de protagonista nesse processo, ao invés de mero figurante.

Teria sido tudo efeito do chocolate? Se me atrevesse a tanto, eu escreveria um ensaio borgeano (referência a Jorge Luís Borges) sobre “a esmagadora infinitude das estantes imaginárias”. Talvez, lá na pontinha de uma dessas estantes (o que é contraditório, pois, se é infinita, não tem pontinha) houvesse um lugar para mais esse livro.